COMIDA DE CONFORTO
Selo Pólvora
2019
Publicação lançada em março de 2019 durante a feira FestA! no Sesc Santana. Dentro do envelope de papel vegetal costurado por Caroline Ricca Lee, consiste em 12 cartões impressos em papel Markato Naturalle 180g/m³, sendo 10 deles a produção de cada das integrantes de nosso selo, que contribuíram compartilhando suas respectivas comidas de conforto. Trazendo à tona questões de memória, afeto e identidade étnico-racial que circundam a narrativa de cada prato, em tempos tão complicados, ser reconfortada pelo o que nos faz lembrar de quem somos e de onde viemos, é essencial. O autocuidado também pode ser um ato revolucionário.
Sobre memória, alimento e afeto.
por Caroline Ricca Lee
Comida é um assunto emocionante sobre pertencimento para pessoas da diáspora, afinal, quantas lembranças ternas permeiam tal imaginário. De cozinhas repletas de histórias borbulhantes que foram apuradas todas juntas no caldo da memória familiar. Até outras, mesmo não tão barulhentas, porém nunca silenciosas, onde toda imensidão do fazer era guiada pelo gestual, sorriso e olhar. A comida é passagem de acesso à nossas memórias, e com isso, à nós mesmos.
Assim, ao abocanhar um pedaço de algo delicioso e sentir o prazer de matar a fome, retornamos à ser criança; ao sentir o vapor quente no rosto de panelas fumegantes, retornamos ao lado de quem amamos; ao cozinhar algo que foi transmitido como herança familiar, nos lembramos. E na lembrança, há revolução. Há direito de existir. Encontramos conforto num passado que além de prever acolhimento e herança etno-racial, anuncia um passado que é arquivado através do afeto; e na posse dessas memórias temos finalmente as rédeas do percurso que se constrói nossa identidade e subjetividade de forma integral. Sendo o prenúncio de um futuro no qual nunca mais esqueçamos quem nós somos, quem um dia fomos, e quais fluxos nos trouxeram até aqui.
As receitas na cabeça e a roupa do corpo foram aquilo que muito de nossos antepassados apenas puderam trazer consigo. Comida é arquivamento histórico, como relato de um povo sobre tradição, resistência e memória.
Muitas das primeiras gerações de imigrantes encontraram oportunidades de trabalho na culinária típica para sua permanência após migração. Quantas crianças, filhas e/ou netas de imigrantes, cresceram não apenas ao lado de fogões domésticos, mas principalmente fogões em serviço. E comida sendo cultura, é também espaço para tomada colonial: desde a imposição cotidiana à uma alimentação “ocidental”, destituição de alimentos considerados étnicos, até a xenofobia inerente nas relações alimentares. Quando em vez da lancheira habitual, sua família envia para o lanche kimchi ou pão naam, isso causa uma comoção entre outras crianças no lugar que você é diferente, consequentemente não pertencente. Essa retirada de pertencimento na infância é o pontapé na auto-ilusão de que quanto mais esquecermos nossas memórias, mais seremos aceitos, acolhidos e inclusos. Nunca será fácil reconhecer tantos processos de apagamento, mas tão necessário é para propormos um cotidiano decolonial, no qual tenhamos autonomia diante do direito de existir.
Precisamos apaziguar a dor e o ressentimento através da conexão diária com nossa memória e reconstruir nossa autoestima através do afeto. É sobre olhar no espelho e reivindicar o corpo como herança familiar, também sobre fazer para si uma comida de conforto e lembrar de tudo aquilo que importa; e assim perceber como suas mãos conectam-se com as mãos de demais gerações, e tal conexão evidencia uma história muito maior do que nós mesmos.

